26.9.06

Coreia do Norte, imagine-se num mundo criado


Imagine um mundo criado por Estaline, Kafka, Orwell, Huxley, Philip K Dick e Woody Allen
Não são poucos os que me perguntam por que raio fui passar férias na Coreia do Norte. Não são umas férias fáceis. A presença constante dos guias e aquilo que senti como uma tentativa de lavagem ao cérebro de manhã à noite são opressoras e houve momentos de desespero por causa disso. Pensei que estava a ser hipócrita, em inúmeras ocasiões que pediam resposta e não fui capaz de dar. Além disso, sou viciado em Coca-Cola e, lá, encontrar uma Coca-Cola é o equivalente a ver uma cruz invertida numa igreja. Mas foram sem dúvida as férias mais fascinantes que já tive, no país mais fechado do mundo, que senti como se estivesse a visitar um universo paralelo. Visitei um regime que creio que já só podemos encontrar na ficção científica.
Para além dos adeptos do regime, imagino que a Coreia do Norte interessa muito àqueles que gostam de política, economia e sociologia. É talvez o único local onde ainda não chegou a globalização e onde podemos encontrar uma civilização realmente diferente, um regime socialista que parece derivado do idealizado por Estaline e Mao, mas que desenvolveu um cunho muito particular. Mas, na minha opinião, a Coreia do Norte interessa sobretudo aos amantes da ficção científica e que sempre sonharam entrar no livro, no filme, no jogo por que se apaixonaram. A ucronia é um sub-género da ficção científica, que também se poderia chamar de novela histórica alternativa, que se caracteriza pelo facto de a trama se desenvolver a partir de um ponto no passado em que algum acontecimento sucedeu de uma forma diferente (por exemplo, os perdedores de uma determinada guerra são os ganhadores, etc.). Philip K Dick é um dos principais autores de ucronias. A distopia é um outro sub-género, que tem muito em comum com o primeiro, que se caracteriza pelo totalitarismo, autoritarismo, bem como um opressivo controlo da sociedade. O termo foi cunhado pelo filósofo e economista John Stuart Mill como o antónimo de utopia, o lugar perfeito, onde tudo é como deveria ser.
“1984”, de George Orwell, é para mim o livro de leitura obrigatória, para quem quer visitar a Coreia do Norte com um olhar crítico. Está tudo lá: o olho totalitário que tudo vê, a lavagem cerebral, a diminuição do léxico a um conjunto de frases simples que reduz a realidade a meia dúzia de chavões.
“O Admirável Mundo Novo”, escrito por Aldous Huxley, é outro livro que relata uma sociedade completamente organizada, sob um sistema científico de castas, onde a vontade livre foi abolida por meio de um condicionamento metódico, a servidão se tornou aceitável mediante doses regulares de felicidade quimicamente transmitida por uma droga e onde as ortodoxias e ideologias eram “propagandeadas” em cursos nocturnos ministrados durante o sono. Aqui, como na Coreia do Norte, cada indivíduo cumpre uma função na sociedade que em grande medida lhe é imposta e não pode fugir dela. Além destas duas obras de referência, “À Beira do Fim” (“Make Room! Make Room!”) de Harry Harrison e o “Planeta dos Macacos” de Pierre Boule são também livros que podem ser lidos por quem, sendo amante da ficção científica, qur tirar o máximo partido de uma visita à Coreia do Norte. Para quem gosta mais da história clássica, recomendo a “República” de Platão e “Roma a Eterna” de Robert Silverberg.
Creio que todos os livros de ficção científica citados foram transpostos para cinema. Quem prefere ver filmes, não deve esquecer-se também de “Sleeper”, de Woody Allen, em que ele interpreta um saxofonista congelado em 1973 e que volta à vida 200 anos depois, para tentar derrubar um governo totalitário e opressor. Ou "Logan’s Run", de Michael Anderson, passado em 2274, onde a sociedade é gerida por computadores, que decidem que toda a gente deve morrer aos 30 anos, para evitar o excesso populacional. “Matrix”, dos irmãos Wachowski e o filme de animação japonês “Ghost in the Shell” e a série de animação da MTV "Aeon Flux" abarcam também o tema dos universos totalitários passados no futuro.
Na banda desenhada, "V for Vendetta" de Alan Moore e David Lloyd, recentemente transposto para cinema, passa-se numa Inglaterra distópica e "Exterminador 17" de Bilal e Dionnet e "Megalex" de Jodorowski e Beltran são também alguns exemplos de obras onde o Estado é omnipresente e totalitário.
Se você gosta de jogos de RPG, não se esqueça de “Paranoia”, um jogo em que os indivíduos estão fechados num complexo regulado por um computador central e o seu trabalho é encontrar e destruir os inimigos do computador.
Quem visita a Coreia do Norte e não gosta do que vê, mas tem a felicidade de poder ver o regime “de fora”, não pode deixar de se lembrar um pouco de todas estas referências. O regime é construído com uma legitimidade válida, até tenho alguma simpatia pelos ideais socialistas, mas o resultado parece saído de um mundo paralelo e é assustador. Imagine um mundo criado por Estaline, Kafka, Orwell, Huxley, Philip K Dick e Woody Allen. Se quer mesmo conhecer o resultado, não deixe de ir passar umas férias à Coreia do Norte.

6 comentários:

allaboutheforest disse...

A semântica articula-se de uma forma quase perfeita num texto que nos faz pegar nas malas e partir. Porém, não me parece que seja para a Coreia do Norte. A terminologia ucronia nunca a tinha visto escrita fora do contexto histórico ou do mundo directamente ligado à ficção científica. É um termo com o qual tenho alguma afinidade.

Para quem não sabe o significado aqui vai a definição da Texto Editora:
Ucronia: utopia aplicada à história; reconstrução da história segundo um rumo que ela poderia ter tomado; aquilo que não se situa em nenhum tempo.

remiguel disse...

brilliant, brilliant, brilliant.
perdeu-se um grande repórter (mas, enfim, ganhou-se um grande... coiso... coméquémesmo... enfim.. um grande garfo)

Devia haver uma coreia do norte dos pequeninos em cada país para podermos ter acesso a este absolutamente fantástico mundo criado. Entretanto, entretenho-me a ler a biografia oficial do Querido Líder: aconselho vivamente, apesar de (o pouco que li) ainda não passar muito de Burton-Cronemberg meets irmãos Marx-Mel Brooks. Espero mais. Talvez tente fazer-vos um resumo, para que a CdN esteja um pouco em todos nós.

carlopod disse...

temos uma aproximação na madeira, já lá foste?

remiguel disse...

realmente! não é mal pensado dar um pulinho à madeira, que, de facto, e lamentavelmente, não conheço.

Anónimo disse...

E não esquecer o fabuloso filme Brazil

carlopod disse...

ah pois foi! e também me esqueci do alphaville e do fahrenheit 451...