31.10.06

Ana Vidigal
















A história da arte em Portugal não raras vezes nos surpreendeu quando tudo e todos se distraíam com défices, guerras, entre guerras, fomes, pestes e outras maleitas ou conjunturas menos favoráveis. Se alguns autores anunciaram a morte da pintura na segunda metade do séc. XX, outros demonstraram que afinal ela estava viva e de boa saúde. O séc. XX assistiu à emergência de novas realidades sociais, políticas, económicas e consequentemente culturais o que obviamente se reflectiu na arte que sempre acompanhou a realidade de cada momento e definiu as vanguardas de cada período. O desenvolvimento da fotografia revolucionou a arte e deu origem a várias correntes estéticas de maior ou menor relevância por um lado e por outro levou a uma alteração de hábitos e costumes no campo da contemplação estética. O acto de tentar entender uma obra de arte estava ultrapassado. O observador não tinha que se esforçar para a entender - a obra é que tinha que se esforçar para ser entendida. A sucessão de imagens fotográficas, que deu origem ao cinema, veio permitir esta facilidade. As necessidades estéticas passaram a ser saciadas frente a uma tela gigante. O observador não tinha mais que pensar. Tudo lhe era dado sem o menor esforço mental. É claro que quem não sabia ler nem escrever teve aqui a sua oportunidade, sobretudo porque lhe foi permitido aceder a uma realidade que estava para além da existência mundana. Se para muitos autores o séc. XX pertenceu à fotografia por excelência, também é certo que a pintura como uma das principais artes que o génio humano cultivou teve os seus momentos de grande importância. A genialidade de artistas como Amadeu de Sousa Cardoso, Columbano, Malhoa, Almada e mais recentemente Julião Sarmento entre muitos outros, asseguraram para sempre, quando não congelaram mesmo, a memória das realidades suas contemporâneas. A arte reflecte o tempo em que é realizada, independentemente do suporte do tipo de conceptualismo, da minimalidade, da arquitectura, das volumetrias, da não arte ou da sua efemeridade estrutural física ou intangível.

Se os homens sempre se destacaram nas diversas áreas relactivas às artes por questões culturais e/ou outras, nem por isso as mulheres deixaram de mostrar que também elas tinham uma palavra a dizer. Na pintura não podemos deixar de referenciar nomes como Josefa d`Óbidos, Aurélia de Sousa, Vieira da Silva, Maluda e mais recentemente Ana Vidigal.

A obra de Ana Vidigal evoluiu significativamente desde o Prémio Revelação de Pintura, com que foi agraciada na III Bienal de Pintura de Vila Nova de Cerveira, no ano de 1982. Não lhe podemos chamar simplesmente pintora. Seria redutor. Muito menos artista conceptual. Aliás, não me parece que a possamos colocar num nicho. Desenho, pintura, colagens são algumas das técnicas utilizadas para materiais vários como plástico, recortes, madeira e tela. A versatilidade é a palavra de ordem. Existe um conceito específico que é mais ou menos evidente em cada uma das obras. O título de cada um dos trabalhos desafia o observador a relacioná-lo com o que está a contemplar. Numa altura em que os consumidores de arte pouco tempo dedicam à fruição de uma obra no sentido de encontrar o seu significado, Ana Vidigal faz-nos parar e tentar perceber o que temos à nossa frente. É como se nos dissesse – Pára. Espera. Não avances. Porque será que este trabalho tem este nome? Tenta entender o meu significado. É uma espécie de convite ao diálogo com a obra. A partir daqui cria-se uma interacção entre obra de arte e observador que o transporta para uma realidade por vezes fantasiosa, por vezes realista e outras vezes ainda literária. Por exemplo nos últimos trabalhos encontramos títulos que parecem saídos de obras literárias como por exemplo “Di-lo meigamente. Desaperta-lhe o cinto” Ainda que possam ser simplesmente frases que cumprem o seu objectivo, transportar o observador para uma outra realidade. Esteticamente as obras aparecem-nos povoadas por uma profusão de cartelas ou vinhetas, análogas àquelas que os egípcios utilizavam para epigrafar o nome do faraó. Ordenadas ou dispostas em formas específicas, preenchidas ou transparentes é certo que estes elementos caracterizam as suas obras. Basta encontrarmos este elemento para de imediato identificarmos a artista. Não há, na maior parte das obras uma preocupação de perspectiva ou de tridimensionalidade. Porém, e apesar da ausência espacial na maior parte dos casos, “O pequeno lorde” rompe essa regra. Uma película bassa, como que desfocada, circunda a imagem de uma pequena criatura antropomórfica. Como se de uma máquina fotográfica se tratasse. A abordagem é totalmente contemporânea. A cada nova série de trabalhos novas técnicas se articulam para criar novos efeitos. Não se tratam de temas estáticos, antes pelo contrário. Aqui e ali surgem programas que primam por um dinamismo notável. As superfícies bidimensionais articulam os vários elementos para uma finalidade estética. Parece este o objectivo a que se propõe. Com uma paleta de cores variadas onde elementos fitomórficos, geométricos e antropomórficos se harmonizam - ou não, em movimentos vários para nos povoar de sentimentos, por vezes contraditórios, a que não conseguimos ficar indiferentes.

Com uma capacidade distinta para ironizar diversas temáticas, Ana Vidigal não é mais uma artista. Ana Vidigal é uma artista a que não podemos nem queremos ficar indiferentes.
A exposição que inaugura no dia 02 de Novembro na Galeria 111 é prova do grande e admirável talento desta notável artista cujos seus trabalhos poderiam, seguramente, figurar nas melhores colecções do mundo. Ana Vidigal apresenta-nos um mundo esteticamente arrojado e pejado de existências criativas, originais e por vezes irónicas. É sem sombra para dúvidas uma das melhores artistas contemporâneas, de primeiríssima água, e já faz parte da história da arte portuguesa.

5 comentários:

carlopod disse...

o que é um elemento fitomórfico?

allaboutheforest disse...

é um elemento vegetal. Por exemplo uma flor.

remiguel disse...

deus meu, forest, o menino aplicou-se! levei uma lição de história de arte e tudo porque vim ao blogue chamado pelo porno.
Há uma peça-vidigal que adoro; adoro arrastá-la, abri-la, fechá-la, esventrá-la, encostá-la, fazê-la ranger.
É uma peça que me questiona: abre-me toda, descobre para além de mim o maná, a ambrósia, todas as delícias que te aguardam. Adoro-a.

remiguel disse...

e parece-me que a lista de pintoras devia crescer: então o menino esquece-se de... Paula Rego?? aiai. (nao me lembro de mais..oops. ah, Sara Afonso?) E já agora gostaria de saber a sua opinião sobre a Graça Morais.

Anónimo disse...

Nao posso viver contigo se estás apaixonada por outra pessoa.