16.4.07

A história de Beatriz Marques

Como entendo que os blogs também têm uma função social, publico uma carta que um amigo meu, que se afeiçoou pela sua vizinha de 78 anos, escreveu ao Senhor Ministro do Trabalho e da Segurança Social, relatando a odisseia dos últimos meses na vida da sua vizinha. Espero poder publicar aqui muito brevemente a resposta do Senhor Ministro.

Lisboa, 12 de Abril de 2007

Assunto: A história de Beatriz Marques.

Ex.mo Senhor Dr. José António Fonseca Vieira da Silva
Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social

O meu nome é (...) e estou a dirigir-me a V.Ex.ª para lhe relatar a história trágica de Beatriz Marques. Resido na Praça das Flores, nº (...) em Lisboa. Sou vizinho da Sra. Beatriz (...) Marques, nascida em 13/07/1928, residente no 1º Esq. daquela morada.

Estou a contactar V.Ex.ª na sequência de acontecimentos trágicos que alteraram de forma permanente a vida da Sra. Beatriz. Com 78 anos, esta senhora precisava de ajuda domiciliária numa base diária. Para isso contava com o apoio, apenas durante os dias úteis, de representantes do Centro Paroquial das Mercês (Centro de Dia). Há muito que vivia sozinha. Não lhe conheço quaisquer familiares. Entre outras instituições que sabiam que a Sra. Beatriz vivia sozinha e sem família incluem-se o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (e em particular as assistentes sociais de S. Lázaro), e o Centro de Saúde de São Mamede -Santa Isabel.
No dia 20 de Fevereiro de 2007, a Sra. Beatriz caiu dentro de sua casa. Como perdeu a locomoção, teve de arrastar-se até à porta de entrada do apartamento – literalmente arrastar-se –, para a abrir e pedir ajuda. Eu e um outro vizinho prestamos-lhe a ajuda possível, acabando por chamar o INEM. Foi transportada para o hospital de São José, onde foi posteriormente submetida a uma operação. Teve alta clínica no dia 5 de Março. A partir daqui deu-se início a uma alteração permanente na sua vida. Para pior. Solicitou permanecer no hospital até poder caminhar. Foi recusado. Contra a sua vontade, foi depositada num dia durante a semana – literalmente depositada –, em sua casa.

A Sra. Beatriz dependia em absoluto das visitas dos representantes do Centro de Dia, as quais se processavam duas vezes ao dia. Numa das visitas era suposto almoçar. Na outra era suposto preparar-se para o dia seguinte, para o próximo almoço. Entre estas visitas, a sua vida consistia em olhar para as paredes do quarto onde estava deitada. Solicitou um fisioterapeuta. Nada conseguiu. Sabia que, por exemplo, caso não conseguisse conter as suas necessidades fisiológicas, podia ter que esperar pelo dia seguinte para ser devidamente tratada. Estava sozinha e sem ninguém. Se precisasse de ajuda, sabia que não havia forma de abrir a porta de entrada. Não andava. Perfeitamente consciente. Perfeitamente em pânico.

O resto da história é muito simples. Em pânico, descobriu que “o apoio, apenas durante os dias úteis” queria dizer mesmo “apenas durante os dias úteis”. Quando questionei representantes do Centro de Dia sobre o que ia acontecer, a resposta (sob a forma de uma nova pergunta) foi clara: “O Sr. imagina quantos idosos moram nesta freguesia?”. Sublinhe-se que a assistência prestada pelo Centro de Dia era pago pela Sra. Beatriz, tendo sido o respectivo valor fixado pelo próprio Centro. Em resumo, fui eu que, por mera sorte, consegui marcar a visita de uma pessoa para o fim-de-semana. Uma total desconhecida. Anónima. As instituições, sempre dentro da lei, lavaram as suas mãos.

Beatriz Marques, nascida em 13/07/1928, não resistiu uma semana. Teve um grave AVC no Domingo seguinte (11 de Março). Foi encontrada pela total desconhecida. Voltou a ser transportada para o hospital de São José, onde ainda se encontra. Continua a precisar de fisioterapia. Mas agora já não move o lado direito do seu corpo. Com sorte, poderá no futuro sentar-se numa cadeira utilizando apenas os seus próprios meios. Pouco mais. Continua a precisar de ajuda do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social. Mas agora já não fala. Pode ser que volte a falar.

Esta é a história que queria relatar. Obrigado pelo seu tempo.
Senti a necessidade de contactar V.Ex.ª porque tenho a sensação de que talvez não continue vizinho durante muito mais tempo de Beatriz da Cunha Rodrigues de Sousa Marques, nascida em 13/07/1928. Solicito a V.Ex.ª que faça tudo ao seu alcance para que um relato como este seja banido de Portugal e para que a minha sensação seja de facto e apenas isso – uma sensação. As instituições têm de funcionar. Tem de ser eficientes. Rigorosas. Humanas. A articulação entre as instituições tem de funcionar e não podem ficar impunes perante tanta culpa. O Estado não pode deixar que os seus velhos, sempre dentro da lei, morram com medo. Sem dignidade.
Fui entretanto informado que a Sra. Beatriz teve "alta clínica". Está pronta.

Atenciosamente,

(...)

PS: Este texto será enviado ao Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (para o email gmtss@mtss.gov.pt e por carta). Será dado conhecimento do texto ao Centro de Saúde de São Mamede -Santa Isabel e ao Centro Paroquial das Mercês (Centro de Dia).

4 comentários:

allaboutheforest disse...

tenho acompanhado esta situação de perto e tenho poucas palavras para dizer qualquer coisa. a senhora Beatriz tem sorte em ter o nosso amigo como vizinho.

carlopod disse...

podes crer.

ZEP disse...

:-)

Anónimo disse...

esse gajo devia ter apagado as luzes e desliagado o radio assim que ouvio a Beatriz pedir ajuda.